O SUPERENCARCERAMENTO À LUZ DA PERSPECTIVA DA POLÍTICA DEGUERRA ÀS DROGAS: UM RECORTE PUNITIVISTA E SELETIVISTAACERCA DA PROBLEMÁTICA CONTEMPORÂNEA
- Natan Nogueira Lopes
- 3 de out. de 2024
- 17 min de leitura
Natan Nogueira Lopes

INTRODUÇÃO
A Política atual de criminalização às drogas tem como escopo a campanha de “colonização ideológica patrocinada a partir do território norte-americano ao redor do mundo” (JUNIOR, 2021, p. 95). É, pois, partindo dessa perspectiva, que a pesquisa busca analisar como a política de criminalização às drogas se estabeleceu no Brasil, influenciada pela ideologia norte-americana de combate às substâncias ilícitas e pelas ideologias da Segurança Nacional e Defesa Social. Assim, busca-se apresentar como esses elementos impactam para o superencarceramento no Brasil, que é visto como uma consequência dessa política proibicionista e seletiva direcionada a um determinado extrato social.
A política proibicionista, investida nos moldes de repressão e seletividade penal, representa os elementos de enlace para o superencarceramento, racismo e criminalização da pobreza (FERRUGEM, 2019, p.112). Esse contexto de seletividade penal no combate de guerra às drogas, apresentado com efeito pela divisão da sociedade entre consumidor e traficante, corresponde ao direcionamento repressivo contra determinados indivíduos que serão criminalizados e encarcerados (CARVALHO, 2016, p.93).
A compreensão desse panorama deve ser iniciada na influência desempenhada pelos Estados Unidos e a afetação de suas perspectivas junto da legislação brasileira, bem como o impacto que os principais marcos temporais proibicionistas delineados no cenário da ascensão punitivista possuem para a atual legislação brasileira de drogas (JUNIOR, 2021, p.64).
Por meio da análise comparada da estatística dos dados coletados pelo Departamento Penitenciário Nacional (Depen), será possível visualizar a problemática do encarceramento ao longo dos anos e a incidência do tráfico de drogas para a massificação dessa estatística.
Assim, para compreender a política de criminalização às drogas e a solidificação desta, sob os efeitos do superencarceramento, se dará uma pesquisa exploratória através do método bibliográfico com técnica de coleta de dados de modo indireto e transversalmente às análises qualitativa e quantitativa. De forma a compreender, portanto, a estatística do encarceramento, por meio desse sistema de controle e punição.
A INFLUÊNCIA NORTE-AMERICANA PARA A LEI DE DROGAS BRASILEIRA E OS PRINCIPAIS MARCOS TEMPORAIS PROIBICIONISTAS
Para entender a política criminal de drogas atual no contexto nacional, é necessário pensar para além da política em si, o que perpassa a ideia de um mero objeto a ser estudado. É necessário, com efeito, examinar, como diz França Junior (2021, p. 64), “o que está por trás do discurso e das práticas repressivas “legitimadas” pela ideologia de “guerra às drogas””, ou seja, aquilo que não se mostra aparente em um primeiro contato com a aludida temática. Portanto, se faz imprescindível analisar as variáveis que encobrem esse discurso e que legitimam este sistema.
A solidificação dessa política de criminalização às drogas possui como escopo a campanha de “colonização ideológica patrocinada a partir do território norte-americano ao redor do mundo” (França Junior, 2021, p. 95), que naturaliza a política criminal da "guerra-às-drogas".
O ingresso do Brasil nesse cenário repressivo se deu frente às convenções e protocolos internacionais que buscavam reprimir o comércio e o consumo dessas substâncias tidas como ilegais, bem como perante as leis criminalizadoras brasileiras que configuram o sistema repressivo. Assim, se faz importante mencionar que esses marcos temporais relacionados ao cenário proibicionista e repressivo estão estritamente ligados à política de drogas vigente e produz diversas consequências, como se verá adiante.
O modelo de sistema repressivo contemporâneo se mostra evidente, como bem ilustrado por Martins Torcato (2016, p. 251) em sua tese de doutorado sobre a história das drogas e sua proibição no Brasil. Trata de uma ascensão punitivista à perspectiva do Direito Penal, que se evidencia ao longo dos anos com o incremento de leis punitivas e do ingresso do Brasil no modelo internacional de controle.
Para Torcato (2016, p. 251), a formação do sistema repressivo de controle é delineado a partir das leis criminalizadoras, como, por exemplo, os Decretos 780/36 e 2.954/38. Igualmente, o ingresso do Brasil no modelo internacional de controle (Decreto-Lei 891/38) representa fator para essa composição.
Registra-se que o diploma legal supramencionado foi editado em um período ditatorial, tal qual se encontrava o Brasil, na vigência do Governo Vargas e após um golpe de Estado em 1937 que deu início ao Estado Novo. Assim, comum em períodos ditatoriais, houve uma maior rigidez da legislação, salientando Luciana Boiteux (2006, p. 140) que:
(...) houve o endurecimento da legislação, com criminalização do consumo de entorpecentes (art. 33), com pena de um a cinco anos de prisão; e a proibição do sursis e do livramento condicional para os condenados por crimes de entorpecentes, característica essa que será seguida pelas legislações nas décadas seguintes.
Conforme ilustra Luis Carlos Valois (2020a, p. 182), esse Decreto adere a classificação das drogas em grupos, seguindo assim o padrão ditado pela legislação norte-americana. Além disso, para Valois (2020a, p. 182), esse Decreto inaugura “uma nova fase da política proibicionista brasileira, que perduraria até os anos 1970”.
Em face do texto original do Código Penal de 1940, o legislador buscou introduzir a “técnica da norma penal em branco nas leis de drogas” (BOITEUX, 2006, p. 141), situação que deixou de vigorar desde 1938, com a edição Decreto 981/38. Desta forma, para a autora, ao implementar essa técnica, buscava-se impender um controle rígido acerca da legislação de drogas. Termos genéricos e imprecisos ampliaram o significado da norma, possibilitando maior poder às autoridades que podiam legislar sobre as drogas com maior liberdade.
Frisa-se que grande parte das legislações especiais, como à Lei de Drogas, dispõe do preceito da norma penal em branco. Dessa forma, “a constância do horizonte maximizado de incriminação”, como alude Salo de Carvalho (2016, p. 298) ao se referir acerca dos tipos penais abertos e leis penais em branco, impende a formação de microssistemas jurídicos que, diante da flexibilização da lei, evidenciam a transgressão das bases garantistas do direito penal.
É nesse sentido que Zaffaroni (apud Carvalho, 2016, p. 298) assinala sobre o perigo das leis penais especiais, fomentadoras da insegurança jurídica: “La legislación penal latinoamericana padece de un mal endémico, que son las ‘leyes penales especiales’, cuya proliferación acarrea un enorme componente de inseguridad jurídica”.
Ainda assim, para França Junior (2021, p. 94):
(...) especialmente no que toca à sua função de limitação do arbítrio estatal -, fragilizou a sedimentação de direitos e garantias fundamentais no exato momento em que tornou possível para o legislador a criação de tipos com níveis de abstração que flertam com regimes de matriz autoritária.
O cenário ditatorial representa, como visto, um endurecimento da legislação, além da redução das liberdades democráticas e aumento da repressão.
O regime de exceção compreendido pela vigência do período ditatorial, possibilitou a instauração de um sistema penal autoritário, assim como explicita Luciana Boiteux (2006, p. 143): “(...) com a implementação de um novo tipo de intervenção penal, com aumento da repressão política. Sob a égide de uma ideologia da segurança nacional, instaurou-se um sistema penal autoritário”.
A mudança extremista de política criminal se deu com a equiparação do usuário ao traficante e com a criminalização de ambos. Por meio dessa nova legislação de drogas – Decreto-lei 385/68 -, promulgada “treze dias depois da edição do AI-5, com o congresso ainda fechado” (BOITEUX, 2006, p. 144), se constata a orientação repressiva do regime vigente que se orientava contra os opositores ao regime.
Não obstante, três anos após a entrada em vigor deste último diploma legal acima mencionado, se editou a Lei n. 5726/71, que modificou o art. 281 do Código Penal, oferecendo “à matéria uma disciplina mais ampla” (BOITEUX, 2006, p.145). Nesse sentido, deu-se um regimento mais amplo ao crime de tráfico de drogas que se fez presente dado às circunstâncias vigentes na época sob a ótica de segurança nacional, de modo a considerar como inimigo interno o tráfico e o uso de drogas, bem como os opositores do regime.
É nesse sentido, que a estratégia de guerra às drogas se perfectibilizou no plano nacional, influenciada, como explica Salo de Carvalho (2016, p. 67), diretamente pelo contexto externo norte-americano, responsável pela diretriz das “políticas de segurança pública dos países da América Latina”, tal qual se vê na Lei 5.726/71.
Desta forma, toma forma o discurso-jurídico político relacionado ao plano da segurança nacional, compreendida através da figura do traficante como inimigo interno a ser combatido, que por meio da representação do papel político que representa e de um alvo a ser eliminado, torna plausível e justificável os aumentos indiscriminados de pena, visto à intenção de segregação deste para com a sociedade (CARVALHO, 2016, p. 69).
Como afirma França Junior (2021, p. 36), a questão da segurança nacional, tornou-se um produto que fora oferecido como “solução” ou “cartão de apresentação” para com os países marginalizados que enfrentavam a problemática das drogas. Dessa forma, o combate e repressão ao uso e ao tráfico de drogas se destinavam à segurança pública.
Os reflexos emanados da importação de modelos de política criminal, sobretudo norte-americano, ratificam-se por consequência de um aumento indiscriminado das penas, tal qual se observa nos dias de hoje, mas que se devem a tais antecedentes que se perduram ao longo dos anos. Assim, conforme aclara Valois (2020a, p. 224) acerca das consequências de importação de tais modelos de políticas criminais:
Outro dano causado pela exportação da concepção de crime dos EUA é o fato de que, estabelecida a conduta como crime pelo país importador daquela concepção, as penas tendem a crescer sem limites ou de acordo com os limites, sempre elásticos, da política criminal de cada nação, esquecendo-se com o tempo que a própria origem do crime é dúbia.
À vista disso, a implementação do modelo pautado no discurso jurídico-político começa a ser delineado suportado no discurso médico-jurídico e assentado em bases eminentemente repressivas, observado com o aumento da punitividade no campo penal e repressão no campo processual penal direcionadas, sobretudo, à figura do inimigo interno.
Com intento de substituir o diploma legal referido acima – Lei 5.726/71, a Lei de Tóxicos 6468/76, surge para corroborar a já consolidada repressão existente tangente à criminalização, incutindo para o estabelecimento do discurso jurídico-político, visto segundo a maestria de Salo de Carvalho como a “concretização moralizadora dos estereótipos consumidor-doente e traficante-delinquente” (2016, p. 69).
É nesse sentido, que o arcabouço da seletividade começa a ser tracejado, perfectibilizando a figura do traficante como inimigo interno a ser aniquilado, tal qual operava segundo os postulados da lógica militarizada. Assim, desperta-se a partir dos anos 60, agregada à ideologia da Defesa Social, especificamente com o regime militar, os postulados da Doutrina de Segurança Nacional (DSN) que serão mantidos nos anos seguintes, sustentados sob o “modelo repressivo militarizado centrado na lógica bélica de eliminação/neutralização de inimigos” (CARVALHO, 2016, p. 70).
Desta forma, o referido diploma legal (Lei 6468/76), dispunha de mecanismos de prevenção, como dever de todos à colaboração na prevenção e na repressão ao tráfico. Este mecanismo, embora denote a aparência de política preventiva, tenciona-se, como aponta Salo de Carvalho (2016, p.74), a um “sistema repressivo autoritário típico dos modelos penais de exceção”. Assim, é diante desse discurso preventivo, que se revela diante da preocupação incessante ao combate ao uso e ao tráfico, que evidencia o sistema repressivo e perverso da Lei de Drogas.
O sistema proibicionista trazido com a Lei 6468/76 se mantém na atual Lei de Drogas – 11.343/06. A base ideológica, no entanto, apresenta importantes distinções em face do nivelamento entre o tratamento penal entre o usuário e o traficante. Assim, conforme elucida Salo de Carvalho (2016. p. 119), os institutos autônomos de natureza distinta para usuários e traficantes na atual Lei de drogas, denotam a continuação da repressão ao traficante, porém, com imposição maior do regime de punibilidade, que consiste em penas privativas de liberdades que variam entre 5 e 15 anos (art. 33, caput, da Lei 11.343/06).
Como já explicitado, a lógica punitivista centrada no estado de beligerância, pauta-se no combate incessante ao tráfico de drogas, mantendo o padrão já referido em outros dispositivos legais que consistem no aumento da punibilidade. Se constata o controle ao usuário diante do efeito penal, com penas restritivas e medidas de segurança atípicas – medidas educacionais (CARVALHO, 2016, p.120).
Nessa senda, a busca desenfreada por uma sociedade livre de drogas se dá com base em medidas repressivas, que se orientam a essa finalidade. Seguindo neste sentido, o modelo de guerra às drogas proposto pelos EUA, que ainda se mantém e se retroalimenta produzindo inúmeras consequências, como o encarceramento e a redução das “hipóteses de incidência dos substitutos penais” (CARVALHO, 2016, p.119).
A SELETIVIDADE PENAL NO COMBATE DE GUERRA ÀS DROGAS
A mudança do modelo da política criminal de drogas, inicia-se, sobretudo, a partir do cenário ditatorial vigente na década de 60, inferindo a alteração da perspectiva orientada simplesmente ao discurso sanitário. O modelo médico-jurídico, tendia, portanto, à ideologia da diferenciação entre consumidor e traficante, ou, como afirma Salo de Carvalho (2016, p.60), entre doente e delinquente.
Cabe assinalar que, para os Estados Unidos, a figura do traficante é compreendida através de um inimigo externo representado na figura latino-americana, uma ameaça ao cidadão americano, visto como consumidor ou usuário. Já no Brasil, essa ameaça é interna, direcionada àqueles que, em sua grande maioria, são marginalizados, periféricos, pobres e pretos que superlotam os presídios em decorrência de crimes relacionados com envolvimento com drogas. Como confirma afirma França Junior (2021, p. 78), o ideário de “guerra às drogas” é historicamente direcionado a essa camada social que sofre as consequências dessa “dinâmica bélica usual”.
O que se observa, portanto, é uma reinterpretação da figura daqueles que são o objeto da seletividade penal – nos EUA, na figura dos latinos, enquanto no Brasil, na figura dos marginalizados –, consistindo, assim, ao que Salo De Carvalho (2016, p. 93) elucida como divisão maniqueísta da sociedade, pautado no antagonismo entre “criminosos versus cidadãos cumpridores da lei”.
Opera-se, portanto, um sistema de descompasso entre o controle e a punição, tendo como norte a repressão pura e simples contra um determinado extrato social. Consistindo assim, em violações aos direitos mais básicos daqueles que sofrem diretamente pela política repressiva de drogas: os setores mais pobres da população (JUNIOR, 2021, p.100).
Como bem destacado por França Junior (2021, p.100), as violações aos direitos elementares ocorrem reiteradamente nas periferias do país, pois constata-se que aqueles que residem nessas áreas são os mais afetados pela política de guerra-às-drogas. Com isso, mesmo diante de estatutos que em tese seriam limitadores da atuação estatal, cabe o reconhecimento do “status de desumanização do sistema de controle e de punição” (JUNIOR, 2021, p. 100), incidindo nesse sentido, para a realidade de desumanização desse sistema ante à violação aos direitos mais básicos.
Nesta seara, em que pese a seletividade contra uma determinada camada social, não se desconhece que diante das ideologias vigentes, reconheça-se um estado de guerra total, consolidado sobre o sistema penal orientado de combate ao crime, que se efetiva pelas agências repressivas estatais (CARVALHO, 2016, p.94).
A concepção que existe hoje da figura do traficante como inimigo interno que representa uma ameaça à soberania nacional é delineada, ocorrendo um direcionamento repressivo orientado à punição dos dissidentes internos, que na época (anos 1960), orientava-se aos criminosos políticos, mas hoje, se orienta aos criminosos comuns (CARVALHO, 2016, p.93).
É nesse sentido que, ao abordar a estrutura beligerante dos sistemas de segurança pública, penal e processual, Salo de Carvalho alega (2016, p.95) que “ao estar sustentado no fundamento da segurança (nacional ou pública), a violência estatal é banalizada, sendo sua programação potencializada e tendendo naturalmente ao abuso”. Por isso, ante à ofensa aos direitos mais básicos, existe um modelo ideológico por trás que legitima tais atos.
Ao tratar a vulnerabilidade como causa da criminalização, Zaffaroni (1991, p.16) ensina que as causas descritas que se referem ao delito não são próprias destas, mas sim devido à criminalização que incorre à um determinado grupo, uma vez ser essa a razão responsável pelo encarceramento daqueles que representam o objeto da seletividade penal. Assim, segundo o autor:
Não é pois, a prática de um delito o que determina a vulnerabilidade de uma pessoa frente ao poder punitivo e inclusive nem sequer é uma condição necessária para ser objeto da seleção criminalizante, senão suas características pessoas, entre as que invariavelmente contam a pertença a classes carenciadas, sua juventude e seu sexo, posto que os inquilinos habituais das prisões são pobres, jovens e varões. Estas são as características comuns dos estereótipos criminais, às quais se agregam outras também do estereótipo e associadas a condições culturais, politicas, geográficas, etc.
Nessa senda, há seletividade que opera diante do exercício do poder punitivo, de modo a selecionar aqueles que recairão à punição direcionada do Estado. Assim, as características pessoais dos indivíduos correspondem a fatores determinantes para a criminalização e consequente punição e encarceramento, representando tais estereótipos como verdadeiros instrumentos seletivos que se projetam na prática rotineira dos segmentos policiais e judiciais (ZAFFARONI, 1991, p.17).
A política proibicionista, investida nos moldes de repressão e seletividade ora mencionados, sustentada ainda pelas Ideologias já explicitadas, representa um dos elementos centrais responsáveis pelos índices de encarceramento relacionados aos delitos que envolvem tipos penais da Lei 11.343/2006. O discurso punitivista associado à seletividade representa, nesse sentido, fatores cruciais que colaboram “de forma significativa, direta ou indiretamente, para essa maximização do carcerário na sociedade contemporânea” (CARVALHO, 2016, p.228).
É dessa seletividade contextualizada no âmbito de guerra às drogas que emerge a “articulação entre racismo, proibicionismo e criminalização da pobreza”, como descrito por Daniela Ferrugem (2019, p. 112). Complementa a autora que é evidente a existência de uma relação entre a criminalização de negros e a criminalização da pobreza, vistos que a população penitenciária é composta em sua grande maioria por pessoas pobres e negras (FERRUGEM, 2019, p.112).
A seletividade que se opera no âmbito policial e judicial, percebe as estatísticas do encarceramento de pobres e negros. Além disso, afirma-se que esse sistema opera através das instituições de justiça criminal juntamente a uma “rede” relacionada de leis, regras, políticas e costumes que controlam aqueles que são taxados como criminosos dentro e fora das prisões (ALEXANDER, 2010, p. 28).
É nesse sentido que se pontua a analogia de Michelle Alexander (2010, p. 28) para o contexto brasileiro que, ao tratar da relação entre raça e sistema penal no contexto de encarceramento norte-americano, infere-se que:
The system operates through our criminal justice institutions, but it functions more like a caste system than a system of crime control. Viewed from this perspective, the socalled underclass is better understood as an undercaste—a lower caste of individuals who are permanently barred by law and custom from mainstream society. Although this new system of racialized social control purports to be colorblind, it creates and maintains racial hierarchy much as earlier systems of control did. Like Jim Crow (and slavery), mass incarceration operates as a tightly networked system of laws, policies, customs, and institutions that operate collectively to ensure the subordinate status of a group defined largely by race.
A aplicação da citação ao contexto da seletividade brasileira, se faz plenamente cabível, vista também a existência de um sistema que opera-se pela ótica de uma seletividade e preconceito implícito.
SUPERENCARCERAMENTO COMO CONSEQUÊNCIA DA POLÍTICA DA LEI DE DROGAS
A problemática do superencarceramento atinente à política de drogas, opera-se, como visto, como uma consequência direta em que, diversos mecanismos da legislação, somados a fatores externos que se relacionam a vigência do modelo proibicionista, incidem para o encarceramento de milhares de pessoas.
A seletividade penal processa-se de maneira direta na atual Lei de Drogas – Lei 11.343/2006. A ausência de critérios objetivos para a diferenciação entre as condutas descritas no art. 28 (usuário) e no art. 33 (tráfico) cria margens, em alguns casos, para possíveis arbitrariedades dos agentes que compõem o sistema punitivo. Aliás, os critérios subjetivos em face da ausência de delimitação são marcadamente um traço que corrobora para o encarceramento. (FERRUGEM, 2006, p.104).
É diante desta conjectura que Zaffaroni, citado por Luciana Boiteux (2006, p. 138), percebe a “multiplicação dos verbos” das condutas referidas nos respectivos tipos penais incriminadores. Desta maneira, segundo a autora, a influência da política internacional proibicionista, ora vista, é um traço característico que marca as legislações de drogas dos países latino-americanos.
Com efeito, nota-se que determinadas condutas de ambos os tipos penais acima referidos se repetem. As condutas de adquirir, guardar, ter em depósito e transportar são as mesmas do art. 28 e art. 33 da Lei 11.343/2006. E, por isso, se diz que a multiplicação dos verbos somados à repetição de determinadas condutas contribuem para possíveis arbitrariedades dos agentes que compõem o sistema punitivo (FERRUGEM, 2019, p.104).
Não obstante, conforme dispõe o 2º parágrafo do art. 28, as circunstâncias que determinam a finalidade da substância – consumo pessoal ou tráfico - se assentam em bases eminentemente subjetivas, de modo que a discricionariedade é um traço marcante para as condutas das autoridades policiais e judiciais, visto que, ao apreciar condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoas e à conduta e antecedentes do agente evidenciam a subjetividade de tais circunstâncias.
Assim, a ausência de critérios objetivos é muito bem explicitada por Daniela Ferrugem (2019, p. 105) ao inferir acerca das circunstâncias referidas no 2º parágrafo do aludido artigo, dado que a criminalização da pobreza, evidenciada pelo alicerce das instituições e pelo racismo estrutural, se desenvolvem a partir da perspectiva do contexto social, classe social e território de abordagem, uma vez que são esses os fatores que podem ser considerados relevantes para a diferenciação entre os tipos penais.
É, pois, a partir desta perspectiva, que conforme ilustra Valois (2020, p. 460), que se concebe a política de drogas como “uma verdadeira produção em rede de encarceramento”. Desta feita, infere-se que “o sistema penal brasileiro é punitivista e utiliza a prisão como primeiro recurso” (FERRUGEM, 2019, p.110).
A força da prisão para o caso de tráfico de drogas aparece diante da “necessidade de proteção da ordem e da saúde pública” (JUNIOR, 2021, p.96). É assim que França Junior (2021, p.96), apresenta duas decisões (RHC 70548 e RHC 78313), nas quais, indivíduos com pequenas quantidades de entorpecentes são mantidos presos sobre os argumentos da proteção da ordem e da saúde pública, no primeiro caso, por 2 gramas de cocaína e no segundo, por 16 gramas de maconha.
Neste ínterim, se faz importante analisar os dados quantitativos de pessoas presas por crimes relacionados ao tráfico de entorpecentes em relação aos demais delitos e à quantidade total da população carcerária, a fim de demonstrar a incidência deste delito no aprisionamento (CARVALHO, 2016, p. 232).
Deste modo, segundo os dados do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN)4 de 2014, a população carcerária no Brasil era composta por 607.731 pessoas presas. Segundo os dados do mesmo Departamento, no ano de 2006, o número de presos era composto por 401.236 pessoas, enquanto que em anos anteriores, como em 2005, a população era de 361.402 pessoas. É evidente, portanto, o aumento significativo dos índices de encarceramento e sobre isso, Salo de Carvalho (2016, p. 232) infere que:
A análise da composição da população carcerária brasileira em relação ao delito imputado permite sustentar a hipótese de que o punitivismo nacional tem como referência o delito de tráfico de entorpecentes. Conforme apresentado desde o início da investigação, a hipótese que orienta o trabalho é a de que a política de repressão ao tráfico de entorpecentes representa o carro-chefe da política criminal brasileira, ultrapassando os limites estritos da incidência no plano prisional para conformar regras e metarregras de compreensão do funcionamento das agências de punitividade (v.g. Polícia, Ministério Público, Judiciário e Administração Carcerária). As principais alterações legislativas são, em grande parte, definidas desde o posicionamento político-criminal proibicionista.
Sob esta perspectiva, Salo de Carvalho atesta que o comércio ilícito de entorpecentes representa a segunda maior causa de aprisionamento, sendo que, conforme ilustra Kalili (apud CARVALHO, 2016, p. 235), “com a legislação de 2006, quadruplicou o número de encarcerados por tráfico. Um ano antes da lei, havia 32,8 mil condenados pelo crime; cinco anos depois, já eram 125,7 mil (DEPEN)”.
Não obstante, se faz indispensável trazer o último levantamento do Depen de 2019. Nesse sentido, conforme dispõe o levantamento, das 748.009 pessoas presas, 183,1 mil estão encarceradas pela incidência do delito da Lei de Drogas.
Desta feita, pela análise comparada dos dados referentes à quantidade de pessoas presas, nota-se que há um aumento vertiginoso dos índices de encarceramento. Tal resultado, deve ser analisado, portanto, sob o viés dos elementos legais ora mencionados, mas também, à devida importância da perspectiva social analisada e à aderência ao modelo político-criminal proibicionista (CARVALHO, 2016, p.231).
CONCLUSÃO
O cenário proibicionista, amparado no discurso de guerra às drogas, representa o fator central das consequências provenientes desse sistema de controle e punição.
A influência dos Estados Unidos para as legislações dos países latino-americanos, como o Brasil, se demonstra por meio da política de criminalização às drogas, estabelecida pela colonização ideológica em um contexto proibicionista e seletivista. É, pois, por meio da formação desse sistema repressivo marcado pela influência norte-americana, que se perfectibiliza o arcabouço hodierno do punitivismo e da seletividade.
A instalação de ideologias, como a de defesa social e segurança nacional, percebe a real problemática existente em torno do contexto da Política de Drogas. Assim sendo, tais influências ideológicas denotam o direcionamento da seletividade penal, pois, se constata a maior atenção penal para com um extrato social específico: pobres, pretos e periféricos. Não somente, é através da égide da segurança nacional que instaura-se o sistema penal autoritário.
Essa diretriz de política de segurança pública é a responsável pelo regimento estreito aos mecanismos que disciplinam a política de drogas. Há, por essa perspectiva, a configuração do traficante como inimigo interno, na figura de um alvo que deve ser eliminado a fim de se manter a normalidade de segurança pública.
Ademais, essa seletividade, contextualizada no cenário de guerra às drogas, suscita o enlace entre o racismo e a criminalização da pobreza, ambos relacionados ao contexto proibicionista. Por isso, a análise multidimensional se faz necessária, pois se demanda a análise de todo um contexto exterior para o entendimento do funcionamento da Política de Drogas.
O superencarceramento aparece, portanto, como consequência a esta problemática multidimensional. Sendo a política de drogas o mecanismo central que legitima e assegura essa pseudoproteção da ordem e da saúde pública.
REFERÊNCIAS
ALEXANDER, Michelle. The new Jim Crow : mass incarceration in the age of colorblindness. 2010.
CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil : estudo criminológico e dogmático da Lei 11.343/06 – Salo de Carvalho. – 8. ed. rev. e atual. – São Paulo : Saraiva, 2016.
JUNIOR, Francisco de Assis França. Criminologia das drogas: desvelando o vício brasileiro pela guerra. Andradina: Meraki, 2021.
RODRIGUES, Luciana Boiteux de Figueiredo. Controle penal sobre as drogas ilícitas: o impacto do proibicionismo no sistema penal e na sociedade. Tese De Doutorado, orientador Prof. Dr. Sergio Salomão Shecaira. São Paulo: Universidade De São Paulo, Faculdade De Direito, 2006.
TORCATO, Carlos Eduardo Martins. A história das drogas e sua proibição no Brasil: da Colônia à República. Tese de Doutorado, orientador Prof. Henrique Soares Carneiro. São Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 2016.
VALOIS, Luís Carlos. O Direito Penal da Guerra às Drogas. 3. Ed. São Paulo: D’ Plácido, 2020a.
VALOIS, Luís Carlos. Conflito entre o princípio da legalidade. 1. Ed. São Paulo: D’Plácido, 2020.
ZAFFARONI, Raúl Eugenio. A filosofia do sistema penitenciário. 1991.

